COMO VALIDAR REGISTROS ORNITOLÓGICOS
Adaptado de Figueiredo et al. (2000) Bol. CEO 14:36-50.
Os registros ornitológicos, como todo processo de observação científica, estão sujeitos a erros. Contribuem para estes, fatores relacionados ao objeto da observação, ao observador e ao processo de observação. Entre os primeiros, destaca-se em nosso meio a grande diversidade de espécies e a grande semelhança entre muitas delas. Quanto aos observadores, há que se considerar que um número crescente de pessoas vêm realizando identificações em campo, muitos destes sem formação acadêmica em ornitologia, chamados de observadores amadores ou ornitólogos auto-didatas. Por outro lado, mesmo profissionais experientes podem equivocar-se em algum registro, o que está inclusive registrado em literatura.
Alguns autores têm refletido sobre esta questão. Argel-de-Oliveira (Bol. CEO 9:36-41) lembra que "vários pesquisadores sérios manifestam uma profunda desconfiança nos resultados apresentados em levantamentos". Entre os fatores que podem ter motivado esta desconfiança cita a crítica constante à publicação de listas feitas por pesquisadores pouco qualificados. A despeito disto acha que a publicação de resultados de levantamentos é de fundamental importância, mas alerta que "cada um deve estar cônscio das limitações que seu trabalho tem, devendo ponderar muito a esse respeito na hora de submeter um manuscrito para publicação". Sugere também que o autor pode assinalar algum de seus registros com um ponto de interrogação, quando não tiver absoluta certeza da identificação. Seria uma forma de submeter suas informações a um certo "controle de qualidade" (aspas da autora).
Algumas iniciativas têm sido tomadas no sentido de controlar erros de registros ornitológicos. Na Europa, muitos países constituíram os chamados Comitês de Raridades, com o objetivo de legitimar registros de espécies poucos comuns.
No Brasil foi criado em 1999 o CBRO - Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos, que tem como um de seus principais objetivos o questionamento de registros de ocorrência de espécies para o território brasileiro, para os quais não existem documentação ou suficiente credibilidade.
Desta forma, é desejável que os próprios observadores acrescentem em seus registros, dados descritivos do processo utilizado no diagnóstico da espécie e base documental que permitiu a identificação, procedimento este que funcionará como uma base referencial para que os usuários destes dados façam deles uma leitura mais cautelosa. Ao invés de um processo auto-depreciativo, como pode parecer à primeira vista, a validação funcionará como um roteiro de checagem de seus próprios dados, estimulando o autor a refletir novamente sobre eles, orientando-o também no aperfeiçoamento de seu processo diagnóstico.
O processo de validação deve ser feito para cada registro ornitológico (ou cada espécie registrada em determinado levantamento) e para o levantamento como um todo.
Para a validação de cada registro em particular deve ser avaliado o processo utilizado para decidir que trata-se de determinada espécie.
Para a validação do levantamento (diversos registros que têm em comum os fatores a seguir relacionados) deve ser feita com relação a:
qualidade do(s) observador(es)
qualidade dos equipamentos utilizados nas observações
qualidade do(s) colaborador(es) da identificação
qualidade dos documentos publicados ou outros nos quais se baseou a identificação
Validação do processo diagnóstico da espécie
Para cada espécie detectada no levantamento indica-se as condições em que se deu o registro e o processo decisório utilizado para a diagnose da espécie (Vide tabela mais adiante). Havendo várias condições e processos decisórios envolvidos, por uma questão de simplificação, pode-se eleger a situação mais confiável, como por exemplo, aqueles que envolvem documentação (coleta de pele, fotografia, filmagem, gravação de voz, ou outra evidência física de igual valor documental), em seguida os que se basearam na visualização e audição de voz, e estes dados foram checados em guia de campo e gravação de voz publicada, e assim por diante. Algumas vezes, entretanto, será interessante indicar mais de um critério, quando isto implicar em aumento da confiabilidade. Por exemplo: ave visualizada cantando: o critério poderá ser: identificada com base em "guia de campo (confirmação visual) + canto publicado (confirmação da voz)" e também: " conhecimento prévio de campo dos observadores (da ave com base em guia de campo e da voz com base em experiência própria)". Este segundo critério atesta a experiência de campo do observador.
Se o objetivo do trabalho é simplesmente constatar a presença da espécie na área em algum momento, ou seja, sua ocorrência na área, pode-se fazer uma validação geral, ou seja, decorrente de todos os registros desta espécie na área. Por outro lado, se interessa verificar a ocorrência da espécie na área em diferentes momentos (sazonalidade, etc) então o processo de validação deve ser feito para cada registro (um registro é toda vez que a espécie é detectada na área). Com a prática, o observador se acostumará a fazer todo registro utilizando as notações de validadação. Ao invés de marcar um "x" em seu check-list, marca a notação de validação do registro. Mesmo assim, numa mesma jornada de observação poderão ser feitos diversos registros da mesma espécie. Opta-se neste caso pelo de maior confiabilidade. Se o objetivo do trabalho é verificar a distribuição da espécie numa área, de acordo com os diversos ambientes, torna-se necessário validar separadamente os registros feitos em cada um destes ambientes.
Validação dos observadores
No caso de observadores que trabalham juntos, para cada identificação registrar com símbolos indicativos de cada um, os observadores que concordaram com a diagnose. Também é interessante apresentar um "curriculum" mínimo de cada observador. Não se trata de um curriculum tradicional, mas de dados que indiquem a capacidade de campo do observador. Entre outras informações sugere-se as seguintes:
formação profissional e acadêmica
life-list (número de espécies brasileiras já observadas em campo)
trabalhos de levantamentos já realizados, publicados ou não: indicar localidade, período, total de horas de observação, total de espécies observadas
Validação dos colaboradores (especialistas)
Mesmos dados anteriores e outros, incluindo formação acadêmica, local de trabalho, dos colaboradores que auxiliaram de alguma forma nas identificações. Indicar a participação destes colaboradores nos Materiais e Métodos.
Validação das publicações utilizadas como referencial para identificação
Todos os materiais publicados utilizados como referencial para a identificação, tais como guias de campo, livros texto, CDs, fitas K-7, sites na Internet, etc, devem ser indicados nos Materiais e Métodos e, quando pertinente, nas referências bibliográficas. Indicar também outros recursos utilizados, como visitas a museus, zoológicos, criadouros, etc.
Validação dos equipamentos utilizados
Discriminar todos os equipamentos utilizados para observação e documentação, indicando especificações de cada um deles: aumentos, marcas, etc. Normalmente esta informação é incluída nos Materiais e Métodos. Entre outros discriminar: binóculos, lunetas, máquinas fotográficas, filmadoras, gravadores, microfones, parábola.
Validação da diagnose de espécies de difícil identificação
No caso de espécies pouco comuns e parecidas com outras, como espécies gêmeas, deve ser apresentado um arrazoado dos motivos que levaram a decidir pela diagnose feita. Descrever os caracteres diferenciais observados. Relacionar também caracteres "negativos", ou seja, não observados e que existem nas espécies que podem se confundir com aquela que estamos diagnosticando. Distribuição geográfica pode ser também um elemento distintivo, embora nem sempre decisivo. Lembrar da possibilidade de algum escape de cativeiro, expansão da distribuição geográfica, rota migratória desconhecida e outras situações. É desejável dispor-se para a região estudada, de uma relação de todas as espécies confundíveis, a serem checadas toda vez que detectadas.
Registros não identificados
Os registros não identificados, ou registros sobre os quais ainda paira alguma dúvida, também deverão ser incluídos nos Resultados, à parte da lista principal. Neste caso deve-se fazer para cada registro um relato detalhado incluindo: descrição da ave, descrição do canto, descrição das condições em que foi feito o registro (data, horário, ambiente, comportamento da ave, etc), e todos os demais dados que possam ajudar na diagnose. Indicar possível ou possíveis diagnoses.
Informações pessoais
Informações pessoais sobre ocorrências também poderão constar à parte da lista principal, indicando-se a(s) fonte(s) das informações.
VALIDAÇÃO DO PROCESSO DIAGNÓSTICO DA ESPÉCIE
Documentação física e informações diagnósticas |
Referêncial utilizado para identificação |
Notação |
Pele coletada (1) (ou espécime coletado vivo e disponível em algum lugar) |
guia de campo |
Pg |
comparação com material de museu |
Pm |
|
especialista |
Pe |
|
conhecimento prévio do observador |
Po |
|
Foto (com gravação da mesma ave vocalizando) ou filmagem da ave vocalizando |
guia de campo |
FGg |
guia de campo + comparação de voz com material publicado |
FGgv |
|
comparação com material de museu |
FGm |
|
especialista |
FGe |
|
conhecimento de campo (2)do observador que já viu a ave vocalizando |
FGo |
|
Foto ou filmagem (imagem apenas) |
guia de campo |
Fg |
comparação com material de museu |
Fm |
|
especialista |
Fe |
|
conhecimento prévio do observador |
Fo |
|
Gravação de voz (vocalização apenas) |
comparação com material publicado |
Gp |
especialista |
Ge |
|
conhecimento de campo do observador que já viu a ave vocalizando |
Go |
|
conhecimento de campo do observador que gravou vocalização e coletou ave |
Gc |
|
Gravação de imitação de voz apenas (o observador imita a ave, gravando esta imitação) |
comparação com material publicado |
GIp |
especialista |
GIe |
|
conhecimento de campo do observador (viu a ave vocalizando) |
GIo |
|
Visualização com o espécime na mão (captura seguida de soltura) |
conhecimento prévio de campo dos observadores |
Cio |
guia de campo |
Cig |
|
comparação posterior com material de museu |
Cim |
|
Audição de vocalização apenas, em resposta a play-back |
utilização de voz de material publicado |
Vbp |
imitação com uso de pios ou outros materiais |
Vbpi |
|
imitação com a boca apenas |
Vib |
|
Audição de vocalização apenas |
comparação imediata com material publicado |
Vip |
comparação posterior com material publicado |
Vpp |
|
conhecimento prévio dos observadores, que já viram a ave vocalizando em campo |
Vo |
|
conhecimento prévio dos observadores que conheciam vocalização da espécie com base em informação de pessoa mais experiente |
Voe |
|
conhecimento dos observadores com base em vocalização publicada |
Vop |
|
conhecimento dos observadores, com base na fonética do canto (3) |
Vof |
|
Visualização apenas (ou vocalizando, mas vocalização não conhecida, não gravada e não utilizada de nenhuma forma no processo decisório) |
conhecimento prévio de campo dos observadores |
Io |
guia de campo |
Ig |
|
comparação com material de museu |
Im |
|
Visualização da ave vocalizando |
conhecimento prévio de campo dos observadores (da ave com base em guia de campo e da voz com base em experiência própria) |
Ivo |
guia de campo (confirmação visual) + canto publicado (confirmação da voz) |
Ivgc |
|
Visualização + registro de dado da biologia (reprodução, alimentação, comportamento, etc) |
mesmas situações do item anterior acrescido da descrição dos dados da biologia |
Ib |
Ninho coletado |
conhecimento prévio dos observadores |
No |
comparação com figura ou descrição publicados |
Np |
|
identificação por especialista |
Ne |
|
Visualização de ninho |
conhecimento prévio de campo dos observadores |
INo |
figura ou descrição em publicação |
INp |
|
comparação com material de museu |
INm |
(1) Pele ou equivalente: partes da pele ou do corpo e até mesmo só uma pena, quando estas forem inequivocamente reconhecidas como próprias de uma determinada e única espécie.
(2) O "conhecimento de campo" inclui também ter visto a ave no cativeiro. "De campo" aqui é o que não é de livro, vídeos, fotos, etc, ou seja, a ave já foi vista ao vivo.
(3) p.ex.: o observador conclui tratar-se de Caprimulgus rufus por já ter lido que o canto parece dizer: "joão-corta-pau".
Notificação negativa de espécies na área
Algumas vezes a indicação explícita de que determinada espécie não foi encontrada numa área pode ser uma informação importante. Com os recursos de equipamentos e disponibilidade de vozes de aves, é possível realizar play-backs sistemáticos em diversos pontos da área pesquisada. A não resposta de espécies que sabidamente respondem bem a esta técnica é uma indicação de sua ausência na área. Estes resultados também devem ser registrados nos relatórios.