Bol. CEO 7:5-9 Julho de 1990

A LEGALIZAÇÃO DA CAÇA

Consuelo Manzano Colinvaux

Centro de Estudos Ornitológicos

É crescente a preocupação dos governos nacionais – e assim precisa ser – com os problemas advindos da caça realizada nos limites de seu território. Países existem em que a caça é rigorosamente disciplinada na legislação e com o mesmo rigor controlada na prática; é o caso dos Estados Unidos e Canadá, na América, e, regra geral, dos países da Europa Ocidental, com pequenas i irrelevantes diferenças caso a caso. Há países por outro lado onde existe razoável disciplinamento jurídico da caça, mas o controle é pífio e compromete a eficácia das restrições. Há por fim, como se sabe, nações onde o controle regulamentado é mínimo, e os resultados dessa omissão aqueles de esperar.

Trata-se, o problema, fácil é ver, de uma simples faceta do estágio civilizatório de cada nação; as desenvolvidas e adiantadas tem severamente controlada a caça, como tudo que possuem, por simples consciência da necessidade de assim te-la; o terceiro mundo, ao avesso, que pouco tem de institucionalizado, no tocante ao problema da caça é lamentavelmente omisso e lacunoso, para sua crescente ruína. E simples é sua constatação definitiva.

Em países como os Estados Unidos a própria população, ciente do precioso significado da fauna, é a primeira a prestigiar o mais rigoroso controle da caça; o mesmo não se pode esperar de nações pobres com população subnutrida, que vê em qualquer caça, antes de nada mais, a solução imediata de sua fome. Exemplo é o Brasil, cujos sertanejos caçam capivaras, antas, macacos, veados e as mais diversas aves para desses animais alimentar-se, como o fazia o primata das cavernas; às vezes raia o absurdo de caçar animais em zoológicos!

Muito se fala na caça preservativa das espécies, caça "ecológica" ou de qualquer modo útil para a mantença das espécies; ocorre que nisto , em países como o nosso, muito há de falácia, e tentativa de dourar a pílula, quando a verdade não é de todo revelada. Assim, menciona-se, como método de viabilizar a caça sem prejuízo da fauna local, a introdução e criação de animais importados (ditos "exóticos"), não nativos portanto, em fazendas ou em programas de restauração da fauna. Ocorre que, se às vezes a tentativa é relativamente exitosa, em muitas vezes os mais imprevisíveis desastres acontecem, como foi com a introdução do pardal e a carpa nos Estados Unidos, o coelho europeu e as ovelhas na Austrália, o esquilo americano (ou cinza) na Inglaterra, e outros, autênticas pragas em que se constituíram.

A experiência demonstra, com efeito, que o comportamento inofensivo de dada espécie em dado continente não garante a mesma inofensividade em outro, sob condições diversas, e que o controle populacional das espécies é, em várias partes do mundo, extremamente detalhado. Sabe-se que inúmeras aves nativas de ilhas, bem como numerosas espécies de mamíferos em extensas áreas de pastagem, são particularmente ameaçados.

Independentemente das costumeiras considerações éticas ou estéticas sobre a caça, é imperioso discutir sobre a economia da conservação do meio ambiente. A caça comercial de aves e mamíferos selvagens tem tido em geral efeitos desastrosos, como, entre centenas de exemplos, figuram o "passenger pigeon", o "maçarico-esquimó" (Eskimo curlew) e o bisão americano.

Sabe-se que o homem primitivo dependia, muito mais que o homem moderno, da caça, mas que, à semelhança das nações "primitivas" de hoje, é virtualmente certo que detinha muito pouca noção, escasso conceito sobre a conservação de sua caça. É cediço por outro lado, que para se manter, em qualquer caso, a população dos animais para caça, é preciso fornecer-lhes o tipo correto de alimentação, proteção de intempéries ou condições naturais de extrema adversidade, como, até, de proteção de predadores.

Como a vida animal , e a expansão territorial das espécies, não conhece fronteiras políticas, constatam-se fúteis os esforços de preservar animais em um país se, cercado ele por outros, não tiverem esses a mesma preocupação, pois bastará nesse caso ao caçador caçar em um e refugiar-se em outro; ou abater a espécie vinda do país onde era protegida, no país onde não é. Evidencia-se a necessidade de cooperação e colaboração internacionais, por acordos que instituam áreas protegidas e, também regulamentação de matança e captura de animais fora dessas áreas. Os populares – e francamente vergonhosos – troféus de caça precisam ser objeto de regulamentação, como é urgente a proibição de certos métodos de matança e de captura.

Parece paradoxal frente à própria evolução humana e ao crescente, e até precipitado, avanço da tecnologia, mas imensas somas são, todos os anos, dispendidas em equipamentos de caça e pesca, e em acessórios conectos à prática da caça; sabe-se das fortunas gastas por caçadores de troféus, peles e objetos de origem animal, obtidos pela caça com fins apenas ornamentais. Algo deve, ainda, quanto a isso, andar errado com a espécie humana.

Quanto, objetivamente, à regulamentação da caça, sabe-se que ela é baseada nas informações de biólogos especializados, treinados nas ciências do solo e na sua influência sobre a qualidade nutritiva da alimentação de animais selvagens, como treinados também em botânica e administração florestal, e nos modos e meios para alterar a composição das espécies nas fazendas, nas florestas, nos pântanos. São profissionais especializados em fisiologia, ecologia e comportamento animal, que detetam as sutilezas de oscilações populacionais, com sua influência sobre a população, como também conhecem estatística, e a interpretação dos seus apontamentos e resultados para administradores e para o público em geral. Isso ocorre em países adiantados, sob estrita vigilância de toda uma evoluída e consciente população, e governos que merecem esse nome. (No Brasil é raro conseguir-se meia dúzia de abnegados e totalmente despreparados funcionários públicos que se prestem a, sem estrutura material mínima, defender milhares de alqueires, nos assim ditos parques ecológicos).

Poder-se-ia, com efeito, conceber uma bipartição dos animais, a serem protegidos de caça indiscriminada, nas seguintes categorias: a) aqueles cuja proteção é urgentíssima e de primeira necessidade, os quais só se poderiam abater, para finalidades muito especiais e restritas se autorizado o abate pela mais alta autoridade da área protegida; b) aqueles a requerer grau menor de proteção, abatíveis através de licença especial (não comum) de caça. Em qualquer caso, é inadmissível autorizar-se o uso de veículos motorizados, entre os quais aeronaves, assim como do fogo para se encurralarem os animais.

É muito urgente o controle severíssimo armas e munições, com reforço do controle sobre o já proibido uso de armas do Exército; armas automáticas devem ser proscritas, como aquelas de calibre menor que o necessário para matar com o primeiro tiro, o animal. É situação que, em nosso país, se acha longe de acontecer, ainda que se esbocem tentativas, nesse sentido, cada vez mais objetivas e menos amadorísticas.

Outro controle, por prosaico que possa parecer, necessário, é o da venda de carne de caça; quando ocorre esse comércio, lucrativo e clandestino, temos um indireto (ou direto?) incentivo à caça.

Pretendeu-se apenas, com essas despretensiosas considerações, e muitíssimo haveria por trazer à tona, alertar para uma conclusão, que parece forçada: é impossível cogitar-se seriamente, neste momento, em legalizar-se a caça no Brasil.

A absoluta falta de condições materiais, técnicas, humanas, institucionais e financeiras do país, e de sua população em tudo despreparada para iniciativa como essa, desaconselham com máxima veemência qualquer tentativa de liberalização, ainda que formalmente sob rígido controle, da caça em nosso território. Se, proibida como é, a matança de animais é indiscriminada, legalizada seria a decretação de rápido fim da fauna, sem remédio segundo nos parece.

Recebido em 15/3/89.